Por Beatriz Dornelles
Para quem gosta do jornalismo opinativo, Crônica: a arte do útil e do fútil é um livro imperdível, pois oferece um panorama histórico da crônica desde sua origem, na literatura, chegando aos tempos atuais, na imprensa. A maneira relatada por Wellington Pereira tornou a obra indispensável aos estudantes de jornalismo e de outras áreas interessadas no tema, deixando como sugestão que outros estudos de pós-graduação possam ser feitos em torno do gênero, porém investigando-se em outros veículos de massa, como no rádio e na televisão.
Apaixonados pelo gênero e pesquisadores encontram na obra as origens da crônica, sua relação com o passado, suas transformações, suas evoluções, e estabelece as diferenças com o ensaio, definindo-o e relatando seu panorama histórico. Pereira apresenta observações relevantes sobre a crônica, a evolução dos conceitos e formas de fazê-la, além de suas características, destacando, logo na abertura do livro, que se trata de um gênero tipicamente brasileiro.
Segundo registrou no prefácio José Marques de Melo, “a crônica significa para os leitores contemporâneos um espaço ao mesmo tempo de reflexão e deleite sobre os fatos cotidianos, habilmente captados por jornalistas capazes de expressá-los de forma amena e crítica”.
Na obra, encontramos, ainda, as origens do termo “cronismo”, as formas lingüísticas da crônica, a opinião de diversos autores, os vários tipos de crônicas e as contribuições dos cronistas. Enriquece essa primeira parte da obra o panorama histórico dos Folhetins, relacionados com a história da crônica, destacando-se as características e diferenças de ambos.
Pereira trata da origem da palavra e as evoluções conceituais de crônica logo no primeiro capítulo, destacando que, nas origens, a noção de crônica estava estritamente ligada à definição histórico-social do tempo nas sociedades. Assim, a crônica nasceu com a legitimação de um processo de anunciação e não de enunciação. Mostra a história que não havia uma interpretação dos fatos narrados, mas apenas sua exposição feita em função de uma ordem cronológica.
É com este sentido que a crônica atravessa os séculos e se aproxima dos historiadores do século XII, na França, Inglaterra e Espanha, assumindo características mistas: ora relato histórico, ora ficção literária, mas com o único objetivo de representar as relações dos homens com o tempo em que vivem, analisa Pereira. Nessa época, o indivíduo encontra uma maneira de tratar os eventos sociais que se sucedem ao seu redor, adequando-os de acordo com as normas sociais e a tradição de seu povo.
No século XVI a crônica ganha outro significado e, segundo alguns autores, esse período fornece elementos para a identificação da gênese do termo crônica. É nesse momento que o autor entra com um estudo aprofundado sobre o Ensaio, considerado, por alguns, como a origem da crônica, o que não é aceito por ele. Segundo Pereira, a crônica ainda caminhava entre os relatos históricos e as nuanças da ficção literária da época, quando o ensaio tornou-se um gênero valorizado pela intelligentsia.
A melhor definição de Ensaio, para o autor, é a que diz que o gênero busca aproximar a linguagem escrita da linguagem coloquial, dando ênfase à maneira de expressão de cada indivíduo. “O ensaio é um breve discurso, compacto, um compêndio de pensamento, experiência e observação. É uma composição em prosa, breve, que tenta (ensaia) ou experimenta interpretar a realidade à custa de uma exposição das reações pessoais do artista em face de um ou vários assuntos de sua experiência ou recordações”, definiu Afrânio Coutinho, em A Literatura no Brasil. O estudo revela, ainda, que o ensaio pode recorrer à narração, descrição, exposição, argumentação, e usar como apresentação a carta, o sermão, o monólogo, o diálogo, a crônica jornalística. Não possui forma fixa. Sua forma é interna, estrutural, de conformidade com o arranjo lógico e as necessidades da expressão.
Interessante observar que numa relação informal com o discurso, o ensaio apresenta as seguintes características, enfatizadas na obra: ênfase na oralidade, construção do texto num tom pessoal, sem qualquer estrutura clássica, sendo visto por alguns estudiosos como modelo seguido pelos cronistas.
Todavia, Pereira afirma que considerar a crônica como um modo de representação e expressão do ensaio é desconhecer a pluralidade de seus significados, porque o texto do cronista não é apenas a tentativa ou a possibilidade de ensaiar uma conceituação para alguns fatos de uma sociedade com tempos históricos determinados. A crônica, mesmo em seu sentido histórico, busca um enriquecimento estético ao tentar agrupar os elementos estruturais que irão habitar no seu interior. Assim, o autor refuta a noção de crônica enquanto apêndice do ensaio ou como um dos seus elementos.
A partir do século XIX, a crônica passa a enfocar as relações fragmentadas do mundo moderno. Nesse período histórico, comenta o autor, há uma infidelidade à razão, um tributo à imaginação, fazendo com que o ato de enunciação de quaisquer fatos possa transmitir entre os anais da História e a ficção literária. A partir do Romantismo, a crônica ganha uma maior liberdade estética, continua híbrida, dificultando uma definição clara e objetiva do que seja a palavra crônica. Mas foi a partir deste momento que a crônica assumiu a personalidade de gênero literário com características próprias, tornando-se hoje uma forma literária de requintado valor estético, um gênero específico e autônomo, a ponto de ter levado Tristão de Athayde a criar o termo “cronismo” para a sua designação geral como gênero literário, relata Pereira.
Na primeira metade do século XIX, a capacidade de opinar, aliada a um certo rebuscamento literário, fez da crônica uma forma de expressão transitória entre a retórica e as manifestações literárias. A ampliação do significado de crônica, apresentado por diferentes autores, é analisada por Pereira, que refuta a maior parte dos conceitos.
Quanto às características da crônica em jornais, afirma o autor: ela não serve como método para aprofundar a notícia, pois esta se configura como um dos gêneros jornalísticos que trazem procedimentos técnicos que lhes são peculiares no processo da linguagem do jornal impresso. As técnicas que regem o jornalismo noticioso ou opinativo não se aplicam ao exercício do cronista. No entender de Pereira, a crônica determina novas relações com os gêneros jornalísticos, não se limitando a informar ou opinar, mas construindo novos significados na própria articulação entre as várias linguagens que o cronista exercita para explicar as representações de seu mundo ao leitor.
Após aprofundada reflexão sobre a origem, desenvolvimento e situação atual da crônica, a obra apresenta o histórico dos Folhetins, estabelecendo suas diferenças com a crônica e apresentando suas características e definições. De maneira bastante clara, o folhetim é descrito como um modo particular de narrar que caracteriza a sociedade em sua fase de industrialização e a noção de cultura que guarda relações complexas com as formas de poder. Segundo o autor, “o folhetinista não só encetou o suspense ou a técnica do gancho, através dos jornais diários, no seu convívio com os leitores, mas demonstrou que tudo se tornou possível aos olhos da modernização”.
Contextualizando as modificações sofridas ao longo dos tempos, o autor conta que no período em que a crônica toma impulso e adquire autonomia estética (século XIX), os jornais ainda não têm um sistema ou linguagem que provem a independência dos seus discursos diante dos gêneros literários. Aos poucos, os jornais vão assumindo ares de empresa, o que implica em tratamento mais adequado para a notícia, mas também na absorção de inúmeros colaboradores que dão à imprensa um tom meio político, meio literário.
No capítulo 2, a crônica no jornalismo brasileiro do século XIX é esmiuçada. O autor discute a construção do jornalismo naquele século, dando ênfase às suas características, tomando como base a distinção entre imprensa e jornalismo. Estabelece a diferença entre ser imprensa e ser jornalismo, concentrando seus argumentos nas hipóteses de que a imprensa da primeira metade do século XIX não legitima seus jornais e não tem autonomia estética.
Nesse período, a imprensa no Brasil não pode ser vista como um exercício puramente jornalístico. O caráter doutrinário embutido nos impressos perfazia toda uma imagem de jornais que, na sua maioria, não sobreviviam longe da sombra do poder. Relata o autor que praticamente não havia o exercício da construção da opinião pública, mas uma imposição de idéias como um instrumento de reforço ético e social para as medidas dos governantes.
Conforme mostra a história da imprensa, até 1898, os jornais conservavam quase a mesma linguagem da imprensa colonial. Não se conheciam ainda as técnicas de apresentação dos fatos e as manchetes não eram utilizadas nas primeiras páginas. Predominava nas páginas dos jornais o tom opinativo, a literatice dos jornais e o fato político.
Esse quadro vai mudar a partir das crônicas de Machado de Assis, publicadas diariamente na Gazeta de Notícias, seção “A Semana”, de 1890 a 1892, onde ele instaura uma nova relação entre os escritos jornalísticos e a literatura e conquista autonomia estética em relação aos gêneros jornalísticos. Os cronistas, então, reestruturam enunciados, ampliam o significado dos fatos e dão ao leitor a capacidade de interpretá-los.
Machado provoca rupturas no aspecto lingüístico do jornal, questiona a relação entre o jornal e o público, desmistifica o caráter opinativo e estabelece uma nova ordem de organização textual. Assim, cria um novo espaço para o leitor, elabora alguns princípios da linguagem dos jornais da época, pois, ao invés de construir fatos em que predomina a visão dos poderosos, dá importância às coisas miúdas do cotidiano, ao falatório nas ruas, às idéias de libertos ou escravos, senhoras e crianças. Em quase 50 páginas, o autor descreve, analisa e interpreta as especificidades das crônicas de Machado, apresentando-as de maneira esplêndida.
Descreve o autor, por exemplo, que Machado procura demonstrar aos leitores a função do cronista: ampliar a capacidade de percepção dos acontecimentos sociais de forma crítica e estabelecer uma análise dos fatos anunciados que distorcem a realidade. Na prática, ensina que a admirável fusão conceitual do útil e do fútil, estabelecida por ele para definir a crônica no jornal impresso, serve para definir a relação entre a crônica e as várias linguagens estruturadas no espaço jornalístico, pois o importante é a percepção da linha tênue entre as banalidades e as “não-banalidades” da vida cotidiana.
Em suma, Machado de Assis não só percebeu os problemas da Modernidade em suas crônicas como assumiu o espírito e a essência da modernidade, que podem ser resumidos em uma única palavra: reflexão.
O terceiro capítulo da obra apresenta um quadro analítico da crônica no jornalismo brasileiro contemporâneo, que perde seu caráter literário. O jornalismo do século XX, descreve o autor, passa a conviver com novas formas narrativas que diferenciam as várias opiniões formuladas através dos jornais. A imprensa estrutura-se de acordo com a nova ordem social e o novo modelo de expansão do capital, não atingindo a maturidade lingüística apenas com a modernização industrial. Os grandes jornais deixam o vínculo doutrinário imposto pelos grupos políticos e partem para a consolidação da atividade jornalística enquanto empresa na primeira década do século XX.
Nesse contexto, o cronista do século XX torna-se uma espécie de narrador que, acima de tudo pensa o espaço de veiculação das informações. Ele sistematiza a informação, utilizando recursos lingüísticos exteriores ao universo da linguagem jornalística.
Conforme analisa Pereira, tendo por base argumentos e fatos apresentados por Cremilda Medina, Ciro Marcondes Filho, Luiz Beltrão e outros, o cronista do jornalismo-empresa procura ler as relações sociais e captar o discurso dos diversos segmentos sociais, pluralizando suas atitudes através de recursos estéticos. E João do Rio é apresentado como o melhor exemplo de convivência entre o exercício literário e as novas técnicas de elaboração da linguagem jornalística. O cronista deixa de ser um mero observador, como vinha sendo, para buscar os fatos onde eles estiverem, procedimento que se iniciou com João do Rio.
O texto apresenta, ainda, uma breve discussão em torno das categorias jornalísticas, destacando que a formulação dos gêneros jornalísticos não avançou no sentido de emprestar a esses uma autonomia estética e diferenciá-los dos procedimentos técnicos, utilizados para estruturar informação nos jornais. Segundo o autor, toda a definição dessas categorias é fruto de uma visão mercantilista do processo de informação.
Para finalizar, encontramos em “Crônica: a arte do útil e do fútil” uma análise das crônicas e do trabalho jornalístico de Carlos Drummond de Andrade, que estabeleceu novos parâmetros para a linguagem jornalística. Diz o autor: “O cronista Carlos Drummond de Andrade é o narrador de um mundo pós-moderno, fragmentado, mas com amplo domínio de seu enunciado, ao contrário do que ocorria no jornalismo do século XIX em que a crônica sempre estava ligada à retórica dos bacharéis ou ao pastiche dos nossos literatos”.